Saturday, May 12, 2007
Um dia seremos outros

O corpo é a nossa âncora
agarra-nos aqui
fixa-nos num tempo
Cresce, dói, alarga,
curva, mirra, morre.
O corpo é um peso,
como uma pedra que pomos
sobre a alma
para que se sirva do instante.
Obriga-nos a fugir, a ir sempre
para fora de nós
olharmos a beleza das flores,
sentirmos o vento que as baloiça.
Sem corpo éramos isso:
o vento, o brilho do sol, as cores do céu.
E - digam-me - que beleza
haveria no gesto de mirarmos
a nossa própria beleza?
Mas o corpo tem prazo;
escurece, engelha, apodrece ainda connosco lá dentro,
começa a estragar-se na nossa presença
para não sentirmos mágoa de o abandonar
e, como um treino de azul,
enquanto o habitamos, viajamos em sonhos
para lá de nós
e, de olhos abertos,
andamos pelo tempo todo,
o que foi e o que está para vir.
Por isso, se atentarmos bem, não há segredos
que o corpo não nos tenha desvendado.
Antes de sermos vento,
céu,
brilho
ou som
habitemo-nos,
olhemos tudo aquilo
com que partilhamos a eternidade.