Sunday, April 01, 2007
Amigos
(todos os dias até ao fim)
Todos os dias, bem cedo, Xumi faz o caminho desde casa até ao largo do quiosque na Praia das Maçãs. São uns dois quilómetros bem puxados, mas Xumi sabe que não pode faltar ao encontro como seu amigo, sr. Manuel.
Segue, alquebrado de artroses e reumáticos, pela linha do eléctrico, chega à praia, atravessa na passadeira e fica à espera que o amigo chegue. O sr. Manuel, sempre ocupado a tratar dos gatos que ali arribam na maré do abandono, chega depois. Xumi recebe-o com abanos de cauda e olhos de água rasos de ternura e saudade e o sr. Manuel diz-lhe palavras calorosas de amigo. Senta-se o homem de olhos de mar depois das tarefas do coração a ler uma qualquer revista ou livro. Xumi deita-se perto dele, suspirando aliviado pelo descanso depois da viagem. Ali ficam até ao almoço: o cão dormita, o homem vai falando com quem passa. Depois, chega o almoço. O sr. Manuel faz sinal aos carros para andarem mais devagar, para darem tempo a Xumi de atravessar a rua, almoçam os dois, o homem toma uma bica, dá dois dedos de conversa e chega-se ao amigo: Então Xuminho, vamos lá? E de novo voltam para o outro lado do passeio: o cão ansioso para se deitar e descansar as pernas, o homem para acabar a leitura. Por volta do fim do dia, o sr. Manuel levanta-se e vai buscar o jeep estacionado do outro lado da rua. Xumi não o segue. Está já muito cansado, dói-lhe o corpo, as pernas balançam como canas ao vento, o frio do mar entra-lhe como facas pelos ossos. Fica no passeio à espera que o amigo dê a volta e traga o carro até ele. Depois deixa que o sr. Manuel lhe pegue ao colo e o meta no carro. Chegados à casa onde Xumi vive, o sr. Manuel pára o carro, pega no amigo ao colo, desce-o do jeep, despede-se dele com uma festa na cabeça e entra no carro para voltar para a sua terra, a Praia das Maçãs. Dá a volta ao jeep e antes de entrar de novo na estrada olha para trás, para onde Xumi está parado, acena e diz: Até amanhã, amigo.
Então o cão velho afasta-se e ruma, cambaleante, a casa.
Amanhã, pela manhã, tudo recomeça. É assim o amor.
(Quem ousa falar em hierarquia de seres vivos? Quem defende que o homem é o único animal que sente amor? Quem cegou a esse ponto? O mundo é ainda um lugar de esperança quando a amizade atravessar raças, credos, cores e espécies.)