Monday, February 26, 2007
Esperar por D. Sebastião
quer venha ou não
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
Fernando Pessoa
Friday, February 23, 2007
A Atenção
É o nosso olhar que desenha o mundo
*
Queria saber pintar, riscar perpendiculares de afecto
mas sobram-me suspiros frustrados
*
o mundo parece-me coisa redonda de afagos
e não a superfície geométrica das rectas
desenhar é um exercício de ternura
passar as mãos pelo rosto, riscá-lo de festas mansas
guardar em nós o calor do outro
ser em relação
não ser eu não ser tu
ser a linha que nos une em nós
Thursday, February 22, 2007
A dor unifica os indivíduos.
É uma cola maior do que a alegria.
A dor vai ao fundo de nós, lá onde todos somos iguais.
Friday, February 16, 2007
A perfeição do mundo
Pela manhã, antes da trovoada, acordei para o dia com a timidez dos ensonados. O Gatú olhava fascinado pela porta do quarto para as ervas que cresciam em baixo. Fixo como uma estátua mas sem a tensão de caçador. Silencioso, embevecido. Espreitei e vi dois pintassilgos a bebicar nas ervas. Coloridos e seguros, entregues às suas tarefas como se estivessem sozinhos no mundo, que o mesmo é dizer como se o mundo fosse só deles. O gato seguia com o olhar os salticos entre as ervas e eu fiquei ali, atrás do gato, a admirar a cena: um animal a ver outros dois, o olhar preso na beleza na cena. E imaginei que algures outro ser olhava atrás de mim e via a cena: um animal a admirar outro animal que segue com o olhar outros dois animais e assim por diante até à esquina do infinito. E se houve coisa de não tive dúvidas foi da intenção amorosa do gato a observar ingenuidade dos pintassilgos donos do mundo.
Thursday, February 15, 2007
Visão do Paraíso
onde tudo parece aqui e agora para sempre
Um cão velho passeava ontem pela trela um menino pequeno. O cão andava devagar, como o menino. Um por cansaço da velhive, o outro porque não dominava ainda a arte dos passos. O menino seguia distraído a olhar o mundo e enrolava os passos nos laços da trela. O cão, esquecido do mundo, atento só ao menino que levava pela trela presa na coleira, pulava e assim desencaracolava a vida do menino. Para que ela seguisse segura, direita apesar dos passos hesitantes. Mas de novo o menino de olhos perdidos no céu e o embaraço do baraço da trela e mais uma vez o cão velho, de cãs no focinho, olhava para baixo para perceber o percurso dos nós e desemaranhava os passos miúdos.O menino seguia tão confiante dele, tão menino do seu nariz, tão certo da ciência do amigo que ao cão só restava o olhar de beatitude e a paciência infinita dos avós.
Wednesday, February 14, 2007
Até ao fim
Os olhos procuram a confirmação de nós
nos outros
Se eu sou tu então quem és tu
que não me reconheço aí?
Olha para mim
mantém o olhar assim
cativo do meu
Percebes agora o mundo?
Sunday, February 11, 2007
Geometria dos gatos
dois círculos dentro de dois círculos
mais um triângulo
a quem limaram as aretas
linhas curvas
montes delas
(um gato não é feito de uma única recta)