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Tuesday, January 30, 2007

O Gato e o Mar

Surgido do nada o gato atravessou os ramos nús
e apareceu no muro do paredão
Rente ao mar
o vaivém
de quem vai e vem
só por ser
rente ao mar
de repente
salta-lhe um gato
emboscado
que sem miar
trava os passos
de vai e vem
e oferece o corpo
para festejar
depois
dá patadas
para o ar
com a intenção de nos apanhar
a mão
e quando estamos já a babar
ignora-nos
ausenta-se e fica
fixo
a olhar o mar

Thursday, January 25, 2007

Infestante

"Acima de todas as raças de animais é colocado o homem, cuja mão destruidora não poupa nada do que é vivo: ele mata para se alimentar, mata para se vestir, mata para se enfeitar, mata para atacar, mata para se defender, mata para se divertir, mata para matar: rei soberbo e terrível, precisa de tudo e nada lhe resiste.

Joseph de Maistre, in As Noites de S. Petersburgo

Wednesday, January 24, 2007

Evolução

Depois disto
serei gato
e depois
pássaro
(aninhado no colchão do vento)
e quando me cansar de ser
pássaro
vou ser nuvem
(e o vento irá desenhar-me mil vezes
e mais uma ainda
até me espalhar devagarinho por aí
invisível, feita céu ou nada)
Depois
começo a respirar mais fundo
a soprar magia
e a suspirar ternura
e serei
(enfim)
vento

Tuesday, January 23, 2007

Uma tarde destas



Há dias em que as gaivotas se juntam em bando no areal. Quietas, silenciosas a esperar o sol. Há dias em que o areal é um imenso mar de gaivotas paradas, estátuas bizarras que perderam a leveza e as asas.

Outros dias as gaivotas berram pelos céus, aborrecem-se ao sol nos telhados e sobrevoam as águas como quem está de partida.

Há dias em que o mar está vazio. Não tem gaivotas, nem pessoas, nem barcos, nem sol, nem céu que se chame azul. Nesses dias o mar é só espuma e barulho, grito e promessa.

Um dia destes, uma gaivota no areal espiava um surfista que se lançava numa onda. Tudo era único. Um, uma, um, uma... Só o mar parecia conter tudo.


Monday, January 22, 2007

Agenda

Em Janeiro os gatos namoram.

Friday, January 19, 2007

Por um triz


Quase tudo é pouco?
E quase nada é muito?
Quase tudo é ainda insuficiente?
Quase nada é menos do que isso?
Quase tudo é o tudo sem o quase
Quase nada é o nada mais o quase
mas o quase é aquele pequeno sopro
que se junta a nada
que se junta a tudo
e os incompleta na soma
e lhes suja a pureza.
Quase
é como
ser feliz por um triz
ou quase isso.

Wednesday, January 17, 2007

Empatia

Gosto de poesia
de filosofia

de maresia
de magia
e de ti

Sunday, January 14, 2007

Por você vou roubar
os anéis de Saturno

Vivo com dois animais em forma de gato. Um é um gato que não sabe que o é. O outro, uma gata que se vai habituando a deixar de o ser. Estudo o comportamento deles, como animais domesticados, e noto que todas as suas concessões têm a ver com coisas essenciais: Comida ou afecto...

Saturday, January 13, 2007

Acha mesmo?

Não senhor escritor, não ouse chamar às galinhas seres esparvoados, mesmo que o senhor se chame Lobo Antunes e as galinhas, na sua maioria, não tenham nomes nem assinem livros.

No outro dia vi uma entrevista consigo
e deixe-me que lhe diga
que esse olhar disperso e vago
esse esparvoamento no gesto o detectei em si.
As galinhas são animais determinados nas coisas
que verdadeiramente lhe interessam
e essas - calhando - serão as mesmas
que o interessam a si.
Não, senhor doutor-escritor-menino
não estou a defender as galinhas
nem sequer a acusá-lo a si.
Gosto dos dois - sim, de si também
e muito - mas parece-me estranho
que você, logo você tão atento,
veja nas aves que debicam por aí
sinais de esparvoamento.

Thursday, January 11, 2007

Pontos de vista

A humanidade esqueceu a sua animalidade
e vê-se como dona da Terra.
Os outros animais olham para o caos
com os olhos da compaixão.

Wednesday, January 10, 2007

Indispensável inutilidade


"On a compris que le chat, qui ne sert à rien,
nous est par cela même indispensable."
Frédéric Vitoux

Sunday, January 07, 2007

Frágil
terra do fogo, 2006

Dou por mim a pensar que algumas imagens que aqui coloco serão, dentro em breve, uma recordação e um doce testemunho da beleza extinta do planeta.



Saturday, January 06, 2007

Podemos escolher a família?


Os cientistas descobriram que todos os animais têm emoções e que são elas que ajudam a perpetuar as espécies. Um gato (ou cão, uma vaca, um porco, um melro, um elefante, uma galinha...) sentem emoções: estão felizes, tristes, impacientes, apreensivos, amorosos, odientos...sentem alegria, raiva, desespero, compaixão, agressividade...
Os cientistas perderam (e continuam a perder) imenso tempo para verificar isso. Os filósofos começam a perceber que o homem só pode responder à eterna pergunta: Quem sou? se souberam reconhecer a sua ligação aos animais e procurar saber Quem são Eles?. Esta semana um estudo publicado numa revista revela que os cães são parentes mais próximos dos homens do que os macacos. (A nível social, entenda-se: os cães interagem connosco facilmente, compreendem-nos à primeira).
Os cães, se perdessem um minuto com os resultados da humana ciência, uivariam de desespero com tão próximo parentesco. Afinal que animais podem querer ser parentes do homem, esse homem que no séc. XXI consegue:
- Condenar um outro homem à forca.
- Filmar a execução
- Difundi-la para todo o mundo
Entre garfadas de um jantar mais ou menos lauto, os homens viram outro homem a ser enforcado pelos seus crimes contra outros homens.
Já agora - pergunta o cão (o gato, a galinha, o elefante, a vaca, o porco, o melro) - quem vai depois enforcar quem enforcou esse homem? E depois os que enforcaram os carracos, e os outros e os outros.... e assim por diante até terem extinto a espécie de inteligência superior??? Ou não é assim que as coisas se passam???
Pobre cão, macaco, gato, melro, vaca, elefante, galinha, porco e tal... com primos destes...

Thursday, January 04, 2007

Gente que se nega

ser gente dificulta a existência
ser gente implica um vício estranho:
conjugar o verbo ser como se fosse dever-ser
ser gente implica incluir a culpa
e a negação de sermos só
sem artíficio
sem arremedos de caridade
bondade ou outra coisa qualquer
ser gente impede que vejamos
com nitidez a verdade dos nossos desejos
Ser gente que deve-ser
- quando não nos apetece -
arranha a alma
e deixa uma sombra nos sorrisos
Ser gente implica que se negue
a constatação do óbvio:
nem sempre conseguimos ser bons.
Ponto!

Wednesday, January 03, 2007

E?
pormenor de porta, sintra 2006

Procuro no dicionário e na enciclopédia o que medo significa e reconheço que significa sempre menos do que aquilo que sentimos quando ele nos habita. O que nos trava os passos, o que nos corta a respiração e nos enche de pesadelos os sonhos é muito maior do que essa palavra pequena e o que ela significa na disciplina da semântica. O medo é a parte interior de nós, o medo somos nós virados do avesso a mostrar aos outros o que queremos esconder de nós. O medo é a mentira com a qual nos construímos para os outros e - mais grave ainda - para consumo interno. Ter medo é não se aceitar como projecto quotidiano, é sonhar-se como obra feita, indestrutível, imutável e eterna. O medo é o nosso orgulho disfarçado em fraqueza, é a nossa riqueza de apenas ser, encoberta pela tentação de ter. O medo sou eu quando me enuncio.

Tuesday, January 02, 2007

Esperança


Um dia
Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.
O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.
Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.

Sophia de Mello Breyner

Monday, January 01, 2007

Sentir
sem sentido

Os animais zangam-se
e fazem as pazes
zangam-se
e fazem as pazes
perseguem-se
e logo se abraçam
e de novo se perseguem
e a seguir se abraçam
Pelo meio não conhecem
o ressentimento
nem a forma ácida
de tornar presente
um qualquer azedume passado

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