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Thursday, November 30, 2006

a íngreme inclinação
da estrada da vida
solidão:
um velho disputado pelos novos
como um troféu
uma hipótese de exibir bondade
um velho a quem não deixam
viver as suas certezas risíveis
por não se conjugarem com o hoje


Wednesday, November 29, 2006


Pés ao caminho


Há dias conheci alguém que me explicou a vida:
"Percorro o mundo, devagar, trabalhando aqui e ali
para ganhar dinheiro para o caminho.
Porquê? Porque descobri que toda a gente se especializa muito cedo numa qualquer singular especificidade sem ter tido tempo de aprender o geral. Assim, percorro o mundo a aprender a ser feliz, a lidar com os outros, a trabalhar nos ofícios mais simples, a saber viver sem dinheiro nos bolsos, só com o conteúdo de uma mochila magra, a passar grandes temporadas sozinho. Depois desse curso geral, irei voltar-me para uma especialização qualquer como, por exemplo, a nanotecnologia."

Chama-se João, tem 21 anos, chegou da África do Sul onde aprendeu durante três meses a fazer pizzas e a servir às meses e dirige-se para a Holanda, para aprender holandês e trabalhar nos campos. Ah, e é português.


Tuesday, November 28, 2006

aos amigos invisíveis

há os ratos de biblioteca
e há os gatos de biblioteca

Vivo rodeada de amigos. Não são muitos, mas estão presentes, por isso os meus amigos são eles mais a sombra deles... e assim cada um vale o dobro. Tenho amigos-pessoas, daqueles que de longe me acenam com saudades, desafios, cumplicidades ou sorrisos (ou isso tudo :-)). Tenho amigos-animais, que me ensinam a ciência das esperas e a beleza dos gestos. Tenho amigos-livros que me surgem com frases tão oportunas que chego a acreditar que se escrevem a eles próprios para me trazer um recado especial. E ultimamente tenho deparado com outro tipo de amigos, seres invisíveis para quem eu sou palavras e sombra. Misteriosamente, além da matéria e das matérias, entendemo-nos nas intenções. Descubro assim que as palavras sem rosto, as palavras como suspiros, desabafos, afagos aproximam outras palavras-desabafos-suspiros-afagos. E nessa atracção de palavras se pode começar a construir a pessoa, como num milagre... Como as partículas que se agregam, os puzzles que se encaixam, as palavras que se completam.

E o milagre torna-se palpável quando se recebem presentes desses seres sonhados e que nos sonham. A imagem que hoje ilustra o dia foi um presente desses


Monday, November 27, 2006

O espanto
magrat de mar
A vida espanta-me tanto
que nem percebo
os que dizem que viver
é coisa natural

Sunday, November 26, 2006

Pacto possível


Paro um pouco a enrolar o meu cigarro (chove)
E vejo um gato branco à janela de um prédio bastante alto
Penso que a questão é esta: a gente
certa gente
sai para a rua,
cansa-se, morre todas as manhãs sem proveito nem glória
e há gatos brancos à janela de prédios bastante altos!
Contudo e já agora penso que os gatos são os únicos burgueses
com quem ainda é possível pactuar—
vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista!
Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a ...
Não, a probabilidade do dinheiro ainda não estragou
inteiramente o gato mas de gato para cima—
nem pensar nisso é bom!
Propalam não sei que náusea, revira-se-me o estômago
só de olhar para eles!
São criaturas, é verdade, calcule-se, gente sensível
e às vezes boa mas tão recomplicada, tão bielo-cosida,
tão ininteligível que já conseguem chorar, com certa sinceridade, lágrimas cem por cento hipócritas.
Mário Cesariny
(que hoje morreu)

Saturday, November 25, 2006

Depois da tempestade

"Um gato vive um pouco nas poltronas,
no cimento ao sol,
no telhado sob a lua.
Vive também sobre a mesa do escritório,
e o salto preciso que ele dá para atingi-la
é mais do que impulso para a cultura.
É o movimento civilizado de um organismo
plenamente ajustado às leis físicas,
e que não carece de suplemento de informação.
Livros e papéis, beneficiam-se com a sua presteza austera.
Mais do que a coruja, o gato é símbolo e guardião da vida intelectual."
Carlos Drummond de Andrade

Friday, November 24, 2006

convite
a chuva cai incansável
de um céu de chumbo
sobre as nossas esperanças

a água é um manto vivo e barrento
que tudo cobre
vem
acende a lareira
e fiquemos aqui dentro
a beber chocolate quente

Thursday, November 23, 2006

no muro do caminho


destaco os animais da paisagem
saltam de lá
incorpóreos
e mornos e macios como os afectos
sinto-lhes a ternura e os medos
aquela compaixão triste
com que por vezes nos olham
ou a curiosidade disfarçada
na indiferença
e só depois lhes olho
as formas, lhes afago o pêlo

Wednesday, November 22, 2006

Quem diria?

Parece que é Primavera
no canteiro da entrada
está tão florido
colorido
que ninguém diria
que a imagem é de hoje

Tuesday, November 21, 2006

a noite cai às 17:30


Nos dias pequenos
faço esforços de memória
para me lembrar da luz branca
que nos inundou os dias

Monday, November 20, 2006

Despejei de nãos o meu falar


As palavras,
as palavras todas,
têm um significado ao lado
significam o que querem dizer
e outra coisa ainda.
Há palavras que cortam
outras que afagam
há palavras que mentem
e outras que denunciam
Há palavras em forma de coração
outras em forma de pedras
há pedras e corações dentro das palavras.
Mesmo o silêncio é cheio de palavras.
Há pequenas palavras
que enchem as grandes de nada
e as esvaziam de poder.
Como dizer não amor?
Como negar ternura à própria ternura?
Um não é como uma faca romba
que ameaça mesmo que incapaz de se cumprir.
Hoje acordei com um monte de palavras na boca;
arranjei-o antes de o dizer
e era mais ou menos isto:
Despejei de nãos o meu falar.
Era tão bom se fosse assim.

Sunday, November 19, 2006

Ainda é cedo
Andei por aí
procurando poesia alheia
para dar chão à beleza dos gatos
Procurei por todo o lado
e em todo o lado
me aparecia poesia linda
justa
daquela que ilustra toda a vida,
sem a qual não vivemos
e que nem damos conta que nos falta
assim
justa
completa
final.
E porém
(pensei eu em minúsculas)
os gatos são meus
companheiros de dias
invente eu a conjugação das palavras
para lhes pintar a beleza,
a estranheza do olhar em fenda
quando o sol lhes bate,
a magia das tardes embaladas pelo suave
ondular dos corpos
que agitam sonhos e sonos.
Procurei nas vinte e três letras
a mistura certa de onde nascessem
as palavras justas
o sentido completo
e definitivo
de isto que nos une
gente e gatos
gatos-gente
gente-gato
e decidi que era ainda cedo
para os ilustrar
fixando na pobreza
de um abecedário curto
tudo aquilo que nos é comum

Wednesday, November 15, 2006

A menos que...
Não me apetece
- não tenho -
assim tantas palavras
para as gastar
descrevendo o que veria
se estivesse empoleirada
acima da vida
a ver viver os outros.
Imagino, porém
- facilmente-
que toda a realidade
vista de cima
perde encanto
porque lhe perdemos o olhar
e de nós
ela nem sonha
a existência.

Thursday, November 09, 2006

há sempre uma luz

Na mais completa escuridão há sempre uma luz que vem do nada para nos acompanhar. Há quem a tema, porque só veja as sombras que a ela se associam. Há quem a aguarde e admire, porque o seu brilho abre sempre clareiras de esperança.

Tuesday, November 07, 2006

sem palavras
andam a faltar-me as palavras. curioso. sempre pensei com elas. assim: primeiro estavam as palavras e depois as coisas que elas queriam dizer. como se o signo ganhasse significado sem a necessidade do significante (nem sei o que estou para aqui a dizer com estas palavras), como se a palavra casa fosse já uma construção com paredes, portas e janelas. agora ando diferente. penso sempre que as palavras podem pouco frente à realidade. as palavras ficaram mais pequenas, perderam autoridade e caixa alta. por agora acabo com as maiúsculas!

Monday, November 06, 2006

1+1
uma gata ao longe
e um gato de perto

???
ainda me interrogo
sobre a razão
de termos nascido
e sobre o nada absoluto
de onde viemos
penso
penso
e nisso
me baralho
depois
olho para a certeza
que existe nos olhos de um gato
e a entrega
que coloca nos sonhos
e fico
subitamente
certa de tudo

Sunday, November 05, 2006

Ilustração dos nossos tempos
***
O gato e o rato

não brincam às escondidas
***

Friday, November 03, 2006

Atenção
barcelona 2006

Passamos pelas coisas sem as ver,

gastos, como animais envelhecidos:

se alguém chama por nós não respondemos,

se alguém nos pede amor não estremecemos,

como frutos de sombra sem sabor,

vamos caindo ao chão, apodrecidos.

Eugénio de Andrade


Wednesday, November 01, 2006

Bolinho, bolinho

Por estes caminhos, nesta manhã morna, andam as crianças de saco na mão: bolinho, bolinho. Como se o tempo tivesse parado algures.

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