gato lunar

São animais vorazes. Pelas manhãs de sol é vê-las a caçar insectos. Implacáveis. Hoje vieram mergulhar no tanque. E nós ficámos a vê-las.

As andorinhas repetem os gestos, repetem-se, voltam ao mesmo sítio, fazem o ninho, uma e outra vez....até ao fim. Não dão nada por certo, garantido. Se no regresso tiverem ainda o ninho antigo, óptimo. Se os homens o tiverem, entretanto, destruído, constroem outro. Igual, rigorosamente igual ao anterior. São os terroristas do hábito. Atacam sempre a realidade com o seu saber milenar. As andorinhas não querem mudar o mundo. Só querem continuar a ser andoinhas, mesmo que gostem de mergulhar na água com cloro das piscinas.

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Trazemos para a vida uma missão: tratarmo-nos, sermos atentos a nós, limparmos o nosso corpo, despoluir a nossa alma, ficarmos mais e melhores, atingirmos a leveza e a imitação imperfeita da perfeição. Sermos pacientes, minuciosos e atentos treina-se. Primeiro temos de tentar ser isso tudo connosco e só depois das claras batidas em castelo e da massa bem envolvida em farinha começamos a tarefa de tentar ser para os outros. Hoje vou tentar ser paciente comigo... e atenta... e minuciosa.... Juro! Já comecei!

Às vezes pergunto-me o que vim cá fazer. Sim, para que serve um gato, melhor, dois gatos que se espreguiçam ao sol, comem e pedem afagos? Qual a missão nobre?, qual o feito que a posteridade irá recordar?, qual o gesto que irá deixar o espanto no olhar dos outros?
Depois de me martirizar com esta ideia, recolho de novo a cabeça entre as patas, sinto o calor do sol no lombo e volto a perceber tudo. As vidas são acidentes de percurso, coisas que nos acontecem quando estamos distraídos e, às vezes, na distração, fazemos coisas que alguém recorda por mais algum tempo (mas que inevitavelmente se esfumarão um dia). A utilidade destes passeio pela vida é gozá-la, Ser simplesmente e não procurar Ser através do olhos/comentários/elogios/espanto alheio. Ser basta e já é muito.
(Estava eu nesses pensamentos profundos, entaramelados com o sonho/sonho e vem ter comigo a que me dá comida e festas com um comentário: 'só vocês para me derreterem o coração. Esperem, vou tirar-vos uma fotografia. Se vocês soubessem o bem que me fazem?!'
Ah! bom, afinal foi para isso??? Que seja!

Aprender a aceitar implica um certo abandono de si, um esforço para simplificar que passa por ignorar regiamente a tentação que se repete à exaustação de exibir a importância que achamos ser merecedores. Aceitar é também perceber finalmente que estamos em tudo como uma presença percentual miníma que nos desconta a vaidade e só aproveita aquela parte de nós que teimamos ainda desconhecer. Aceitar é saber que sendo como somos, partes infidecimais de tudo, nada nos pode aborrecer de forma definitiva pois somos ainda o aborrecimento e o que se aborrece. Aceitar passa por ser um esforço, mas não deve sê-lo. Aceitar é simplificarmo-nos ao máximo e chegar enfim à raíz das coisas.

Aos domingos é assim, ficamos mais tempo aninhados por ali, acordamos devagar...mas hoje mudou a hora e uma hora antes da hora que já não era abrimos os olhos na estranheza do tempo. Lá fora tudo permanece impassivelmente igual, só o movimento das gentes denuncia uma aceitação tácita de um novo tempo. Upa lá levantar! Temos de compor o passo com os que vão. A vida é sempre este 'esquerda, direita' mandado, onde a vontade e a intenção individual falham? Arreeeeeee!!!

" O homem não pode manter-se humano a esta velocidade, se viver como um autómato será aniquilado. A serenidade, uma certa lentidão, é tão inseparável da vida do homem como a sucessão das estações é inseparável das plantas, ou do nascimento das crianças."

Ernesto Sabato in Resistir

Que existe de mais secreto do que o acto de espreitar? Espreitamos para ver, sem sermos vistos, o que obviamente está a ser feito para não o vermos. O espreitador é um clandestino, um ser que se apropria do segredo dos outros mas que, pelo carácter secreto da sua função, deixa apodrecer o segredo alheio entre as mãos. Se o areja ou difunde, desvenda aos outros o seu mister obscuro de espreitador.

Corremos pela casa num som metálico de unhas tocando a madeira para apanhar a rosada alegria que roda à nossa frente. Como a felicidade, sempre que nos propomos agarrá-la, conseguimos. Precisamos vontade e esforço. Ah! e fé, muita fé! Tal e qual como no futebol.

Tornamo-nos na nossa vida, deixamos de ser gatos, passamos a ser adereços de salas e quartos, enxotados das mesas e fotografados no nosso esconderijo possível, longe das árvores que nunca trepámos e das corridas ao ar livre. Amados, mimados, apaparicados, falamos com os humanos numa linguagem intermédia entre a nossa e a deles, compreedemos os seus gestos, sentimos as suas tristezas e intuimos o que ainda não sabem. Moramos com eles, dividimos o espaço e os afectos. Visto de fora, esta é uma das vidas de gato. Onde estão as outras oito?

Quando nos deixamos levar pelo sono e o sonho nos visita deviamos ao menos manter uma parte do cérebro na função on, para gravar as imagens e os sons que nos visitam nesse sítio entre o concreto e o desejo. Deviamos ainda saber, ao acordar, decifrar a mensagem onírica e perceber que a outra parte da nossa vida está nos sonhos. Por isso dormimos tanto!!!

Deixei pousar aqui uma mosca para ver até onde sou capaz de me controlar. Esta não vou caçar! Zzzzz!!

"... sempre que me mostrei suficientemente humilde e disposto a permitir que um ser que não era humano me instruísse, este amigo, quer tivesse quatro patas, seis ou nenhuma, compartilhou comigo uma sabedoria que não tem preço. Todos eles me ensinaram que a perfeita compreensão entre o ser humano e outras formas de vida é possível no momento em que o ser humano cumpre realmente o papel que lhe corresponde"

J. Boone, Amigos o Parientes

Pelo canto do olho percebo que está uma bela manhã. Céu azul, sol e música de fundo. O melro não se cansa de gargalhar e, pelo que sinto, as andorinhas andam doidas a riscar no céu linhas perpendiculares. Quem tem assim tanta energia pela manhã? Eu não!!! Vou dormir mais um pouco.